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"Portugal é um país sob ocupação"

Entrevista a Carvalho da Silva

Entrevista a Carvalho da Silva.

Manuel Carvalho da Silva, carismático líder da CGTP-IN, cargo que deixou recentemente, é, aos 63 anos de idade, um homem que garante que continuará a ter uma intervenção sócio-política na sociedade portuguesa. Natural de Viatodos, freguesia onde Mário Soares chegou a "lançá-lo" como uma boa hipótese para Presidente da República, não descarta de todo essa hipótese, dizendo, no entanto, que a sua acção futura, seja ela qual for, dependerá, sempre, dos movimentos que forem criados.

Teve 25 anos de experiência como líder da CGTP. Isso abriu-lhe muitas portas junto de várias forças políticas e também lhe deu visibilidade.

Costumo dizer que sou um sindicalista privilegiado. Muitas vezes há comentários depreciativos sobre o sindicalismo e os sindicalistas. Claro que, como em tudo na vida, há quem cumpra mais e menos, mas em regra os sindicalistas são pessoas que fazem um esforço de vida, imensos sacrifícios. Grande parte deles enfrentando problemas no local de trabalho muito complicados. Eu, por sorte e como resultado das funções que desempenhei, embora também tenha feito sacrifícios, tive um privilégio: possibilidade de estabelecer muitos contactos, muitas relações no plano nacional, internacional, muito enriquecedores.

Agora com esta saída da "ribalta", vai deixar de ter uma intervenção cívica, política, social, mais activa na sociedade portuguesa?

Também costumo dizer, a brincar mas com uma certa dose de verdade, que também sou um privilegiado neste sentido: sou um indivíduo que já ultrapassou os 60 anos (fiz 63 há pouco) e quando me perguntam o que vou fazer, dou a indicação de algumas coisas mas não sei outras. Só sei que fui sindicalista porque sou trabalhador por conta de outrem, não vou regressar à empresa a que tinha vínculo quando fui para o sindicalismo, e o meu primeiro desafio, enquanto ser humano, com família organizada, responsabilidades, é ter de continuar a trabalhar. Tenho vínculo de meio-tempo com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra para dirigir o pólo de Lisboa e é nisso que me vou empenhar, e com a Universidade Lusófona para dar aulas, onde comecei também no segundo semestre do ano passado.

E a intervenção política?

Tenho manifestado vontade, em função das condições que surgirem, de ser um actor social e político. Acho que é preciso os cidadãos participarem na vida da sociedade e tudo o que puder fazer, farei. Essa intervenção de carácter sócio-político poderá ser mais ou menos ampla conforme as condições concretas e objectivas que forem surgindo, mas que não dependem só de mim. Dependem também do espaço onde nos movemos, das oportunidades que se constroem. E, portanto, a predisposição é essa. Não tenho nenhuma situação pré-definida, nem tenho obsessão por nada.

Mas não fecha portas a uma eventual participação política mais activa, nomeadamente em processos eleitorais ou noutro tipo de lutas desse género?

Seguir uma intervenção política em termos clássicos, de militância partidária, isso está fora de questão. Até hoje tive vinculação a um partido político e não tenciono ter outra vinculação. Quanto às minhas relações e identidade com o Partido Comunista está mais que esclarecido. No sentido de uma intervenção que pode associar o social ao político, logo veremos o que é que surge. A sociedade portuguesa, como outras europeias, estão a ser desafiadas para encontrar relações sociais novas, dinâmicas e políticas novas. Logo se verá.

Mário Soares chegou a sugerir que Carvalho da Silva poderia vir a ser um bom Presidente da República.

As sugestões são uma coisa. O tempo e a oportunidade para as fazer são outras.

"Uma sugestão mal feita ou feita fora de tempo pode ser mais negativa do que positiva"

Mas vindo de quem vem ganha um certo peso.

Sim, mas também posso acrescentar, com todo o respeito e amizade pessoal que tenho pelo doutor Mário Soares, que uma sugestão mal feita ou feita fora de tempo pode ser mais negativa do que positiva. Portanto, quanto a isso, acho que em Portugal, à esquerda, nunca houve uma reflexão tão profunda quanto a sociedade portuguesa precisaria, sobre o que significa a Presidência da República e sobre o compromisso das forças de esquerda em relação a uma estratégia para ganhar à direita. Nas últimas duas eleições esta ausência de uma estratégia à esquerda foi mais visível. Com isto não estou a dizer que cada força não tinha a sua estratégia e com convicção e sustentação. Tenho todo o respeito pelas opções que cada força política assume, mas é visível que não delinear uma preocupação de haver uma estratégia que sustentasse denominadores comuns que pudessem permitir uma vitória à esquerda. E isso era muito importante. Costumo dizer que é um prejuízo muito grande para o país, num contexto como aquele que estamos a viver, ter um Presidente da República que não tem vontade política, nem formação no sentido de, neste contexto de grandes dificuldades e crise, poder dar sinais ao povo português de mobilização, responsabilização, de não submissão às inevitabilidades e isso é um enorme prejuízo para a sociedade portuguesa. Era importante que estivesse na Presidência da República alguém, e eu julgo que esse alguém só pode vir da esquerda, com uma identidade forte à esquerda, que pudesse ajudar nesta fase. Que tivesse uma acção que não contribuísse para que os portugueses se submetam e apreendam um conjunto de absolutismos feitos de falsidades, mas sim que reagissem e que começassem a perceber, pela acção e for uma intervenção que levasse a uma mobilização. Mas, dizia eu que, nas duas últimas eleições foi visível que à esquerda não houve o mínimo de esforço para encontrar denominadores comuns e para tentar que o povo se mobilizasse exclusivamente em torno de um projecto de sentido progressista. No momento presente, as referências que vão sendo feitas ainda são mais pela negativa do que pela positiva. Os caminhos, alternativas e soluções para o país baseam-se apenas nos estaticismos e muito dominados por numa lógica de centrão político que é um desastre. É este centrão político que leva a que estejamos onde estamos.

Um jornal nacional levantava uma questão: e se o Presidente resignasse? Já nem falava tanto em problemas de opções políticas ou de afirmação, mas mais pelo contraste que foi feito entre o primeiro-ministro e o Presidente da República na capacidade de enfrentar a contestação popular. Cavaco recuou, não comparecendo numa escola onde estava a ser contestado e Passos Coelho teria enfrentado as pessoas. Acha que este PR deveria mesmo resignar?

Não me quero pronunciar sobre isso. O que digo é que a intervenção dele não está a ajudar em nada à solução dos problemas do país. E é absolutamente inaceitável em democracia esta postura de fuga à manifestação das pessoas. Um dos problemas fundamentais da governação, que nos leva a estes becos onde nos encontramos, é o facto de os intérpretes do poder político não darem atenção aos protestos e anseios das pessoas e seguirem uma lógica de governação de um país sob ocupação. Alguns dos nossos governantes deviam fazer uma revisitação do discurso do governo de Vichy durante a ocupação nazi. A invocação sistemática dos governos sob ocupação – e com isto não quero dizer que estamos dominados peo nazismo – é a invocação do interesse Estado, para não responder aos interesses das pessoas. E nós vemos que o PR também começou, clara e inequivocamente, a alinhar por aí. Faz o discurso do interesse do Estado e depois não tem capacidade para ir ao diálogo e interpretar o que são os sentimentos das pessoas. Isto é uma expressão muito grande da ineficácia e do vazio da acção.

Posso interpretar das suas palavras que há aqui uma espécie de ocupação da Troika?

Claro que Portugal é hoje um país com traços significativos de quem está sob ocupação. É visível na fragilização da democracia, na não interpretação dos problemas dos portugueses. Não temos um programa de Governo a cumprir, mas uma cartilha que é de uma força exterior, ainda por cima de uma entidade não credenciada, não responsabilizável do ponto de vista democrático. Não tem nenhum mandato democrático, são indivíduos que representam instituições, mas as instituições não respondem directamente perante o povo. Assistimos a coisas como esta: a senhora Christine Lagarde a dizer que se deve abandonar a via da austeridade e um dos seus representantes, nesta Troika, a impor a austeridade. São estas disfunções todas que marcam esta relação espúria. Participei em várias reuniões com membros do governo e o que ouvi foi um sistemático invocar do interesse nacional, plasmado no conteúdo do acordo da Troika. Quando se lhes dizia que as pessoas podiam ficar sem subsídio de desemprego, sem protecção social, a resposta era voltar ao ponto onde foi interrompida e continuar com a conversa do interesse do Estado. Costumo dizer, que mesmo numa perspectiva de aceitação do compromisso do memorando, como necessidade a ter em conta, um governante tinha sempre que partir dos problemas concretos, da pobreza, da situação dos trabalhadores falar dos pobres, da economia, da situação concreta das empresas. Isto não é feito.

Este caminho pode-nos conduzir a uma situação semelhante à que vivíamos no período entre guerras, depois da Grande Depressão? Se bem que a História não se repita, mas…

Sim, as formas podem ser diferentes, agora a contextualização tem perigos idênticos, de resvalar para aí. Eu digo que, se a nível da União Europeia as coisas continuarem assim por mais ano e meio, deveremos ter a consciência que vamos entrar num descalabro que não imaginamos as suas expressões ou a sua dimensão. O projecto europeu, naquilo para que fomos mobilizados, assentava na cooperação, relações entre os povos e respeito pela sua soberania, na harmonização social no progresso, afirmação de valores democráticos, Estado Social. Tudo isso está posto de lado.

E assistimos a atitudes de afrontamento claro e inequívoco. O que está a ser feito à Grécia, e a nós em dimensão menor leva ao descalabro em série. Não há recomposição do caminho da União Europeia introduzindo mais precauções em relação à democracia, à soberania e libertação da especulação financeira. Não há um retorno à afirmação do Estado Social, direitos dos trabalhadores, com as forças de direitos e de extrema-direita a dominarem a Europa.

Acha que estamos numa altura de mudança de paradigma, ou numa encruzilhada, bifurcação?

Nos períodos de grande crise é fundamental a conjugação de reformas.

Mas são sempre um

sofrimento essas reformas e rupturas.

São, mas há muita coisa que está em mudança no mundo e nem tudo é negativo. Agora há contradições profundas. No caso da Europa, encaminhou-se para uma interpretação da cartilha neoliberal pura e dura e isto vai ter custos. Encaminhou-se por essa via, submeteu-se em absoluto a uma estratégia que não tem nada de autonomia e, no plano interno, os fortes impuseram-se aos mais fracos e abandonou-se a coesão. Neste contexto estamos, como diz o relatório do director geral da OIT na 100º Conferência, numa situação em que uma nova área está emergindo no mundo. Curioso que ele diz que, uma nova era identifica-se quando os dogmas, valores, instituições e as práticas da velha começam a fracassar. E é isso que nós hoje temos. Vemos que as instituições que estão credenciadas nesta velha era estão a ser substituídas por forças não credenciadas. São os G20, G16, G8 e G2 que substituem as Nações Unidas em muitas das suas decisões. O nosso programa de governação é o da Troika, não é construído pelos portugueses com as suas forças políticas. São as multi-nacionais que impõe as regras do comércio do mundo e não a Organização Mundial do Comércio.

A OMC é manipulada, o Banco Mundial é manipulado, o Fundo Monetário Internacional é manipulado. No meio disto tudo há uma certeza: as novas eras não nos são oferecidas. Elas são uma construção dos trabalhadores, dos povos e também aqui há-de ser. Não se espere que este governo resolva os problemas do país, no sentido de servir os interesses do país e do povo. A estratégia que está em curso é uma estratégia clara e inequívoca de retrocesso social, civilizacional. Quando o país começar a crescer, viremos lá do fundo e os problemas sociais na sociedade serão muito mais graves do que o que são hoje. As questões da igualdade serão absolutamente cilindradas.

Para já é um dado adquirido que o capitalismo não será o fim da História.

Seguramente, mas enquanto se encontram caminhos alternativos, mais estrutu-rados é preciso um grande esforço do ponto de vista social e político para se criarem dinâmicas novas.

Mas os movimentos que se afirmaram como alternativa ao capitalismo, uns fracassaram outros ficaram no meio do caminho. Outros até se transformaram em novas formas de capitalismo. O capitalismo foi capaz, não só de absorver uns como liquidar outros..

Sim, mas está na maior crise de sempre. Há múltiplas dimensões que mostram que o sistema está a mergulhar em problemas e contradições. A palavra globalização devia apelar ao universalismo, não é? Devíamos estar a falar de mais universalismo, mais multilateralidade, mais multiculturalidade e vemos exactamente o contrário. Mesmo no caso europeu, não há sentido universalista na resolução dos problemas sociais ou respeito pelos povos. Basta ver os discursos dos alemães em relação à Grécia. E entrou-se numa fase que o Marx não podia prever quando analisou o capital, que é a manipulação da atribuição do valor do trabalho. Porque é que dois indivíduos, e os seres humanos têm mais ou menos a mesma inteligência, podem ser o mais dedicados possível às empresas, mas em função de critérios de mérito, atribuídos unilateralmente, a um e atribuído uma retribuição 10 mil vezes superior à do outro? Temos é que, no meio disto tudo, tratar aqui do nosso quintal e ter a noção que não há saídas sem mobilização e tal implica projectos, crédito.

Mas também implica liderança. Há uma crise de lideranças, não acha?

Há crise de liderança, porque há uma governação sem ética, sem valores.

Mas mesmo à esquerda não se vê uma figura, consensual.

As lideranças têm dimensões individuais e colectivas. É preciso constituir denominadores comuns e lideranças e partilhas que levem a isso. Mas, é preciso que se apresentem projectos credíveis.

Estaria disponível para liderar projectos desse género?

É preciso um grande respeito pelas entidades políticas e sociais. Cometem-se erros primários quando às vezes se fazem apreciações ligeiras. É bom ter presente que apesar de todas as deficiências e múltiplas subversões, as pessoas que lá estão fazem um esforço honesto e empenhado para encontrarem soluções. Mas as saídas para os problemas vão exigir novas práticas.

Perante governantes que não sabem ler o significado dos protestos populares, como disse há pouco, de que valerá a greve geral anunciada recentemente pela CGTP?

Há profundas razões para os trabalhadores fazerem o máximo de luta que puderem. Se não houver um esforço grande em reacção ao que está a ser imposto aos trabalhadores, o retrocesso social e civilizacional é rapidamente cavado e com perdas enormes para aquilo que foi o campo que mais sustentou o desenvolvimento das sociedades, que foi a afirmação dos direitos do trabalho, sociais, da cidadania e até a próprio Estado Social. A resistência dos trabalhadores, em defesa dos seus direitos, é imperiosa e todas as formas que puderem ser desenvolvidas devem sê-lo. E compete aos dirigentes sindicais no activo, e eu já não estou no activo, definir os momentos e as formas adequadas. Eu espero que haja capacidade de mobilização dos trabalhadores portugueses.

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23 de Fev de 2012 0

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